Hokianga, Nova Zelândia,
29 de maio de 1841.
Reverendo e caro superior:
Como membros da família de Maria nos amamos sem nos ver, quiçá mesmo sem nos conhecer; nem o tempo nem a distância serão empecilho à caridade que nos une. “Como é bom, como é belo habitarem os irmãos em perfeita unidade”. Reverendo padre, sei quanto interesse dispensais à nossa missão; suponho que vos serão agradáveis algumas notícias que estes breves momentos me permitem dar-vos hoje.
Embora os nossos aborígines comecem a perder algo das suas características primitivas no relacionamento com os brancos, ainda demonstram traços de admirável simplicidade. Um chefe, outro dia, para provar-me a necessidade de vê-lo seguidamente, a fim de instruí-lo, dizia-me: Quando rezo, apenas sei dirigir a Deus estas palavras: “Ó meu Deus, nenhuma outra coisa te posso dizer senão que eu te amo, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”.
Grande parte dos nossos nativos já ouviram explicações dos mandamentos de Deus. Na primeira vez que lhes dei explicações sobre as leis divinas, alguns deles disseram considerá-las muito conformes à razão. Não saberia dizer quem é mais fiel na prática dos mandamentos de Deus, se o pequeno grupo de europeus ou os pobres maoris. O fato seguinte esclarecerá o meu pensamento. Certo europeu solicitou a um neófito que obtivesse a concordância de uma das suas irmãs para consentir no mal; o neófito foi buscar o seu pequeno livro de oração; mostrando-o, exclamou: “Creio em Deus; ainda que me desses todos os bens do mundo, não consentiria em ofendê-lo”.
Tempos atrás, vários aborígines, reunidos, refletiam sobre a sua fragilidade; não tendo ainda conhecimento do sacramento da penitência, perguntaram-me se não haveria meio de levantar-se para quem tivesse cometido pecado após o batismo. Respondi-lhes que Nosso Senhor Jesus Cristo havia instituído o sacramento da penitência para perdoar os pecados cometidos após o batismo; receberam a resposta com grande prazer. Aliás, parece-me que a confissão não será fardo para eles; custa-lhes pouco declarar os pecados, em público como em particular. Muitos neófitos já se aproximaram do sacramento da confissão. Instruindo determinado jovem sobre esse sacramento, como lhe dissesse haver necessidade de declarar pelo menos as faltas mortais, respondeu-me ingenuamente que nunca havia cometido grandes pecados; depois, perguntou-me se a confissão era boa coisa. Tendo-lhe respondido afirmativamente, de imediato quis realizar o seu desejo de se confessar; observei-lhe que seria melhor aguardar, até que ficasse mais instruído.
Os objetos de culto são do agrado dos nativos; comprazem-se com cruzes, com medalhas e terços. Muitas vezes insistem em ter tais objetos. Certo dia, uma mulher me pediu o terço; diante da resposta negativa, ela replicou: Como podes pregar que desapegue o coração das coisas terrenas, se estás apegado ao teu terço? Da mesma forma, fazem-nos muitos tipos de consultas até para coisas insignificantes: uns perguntam-nos se, em caso de guerra, poderão transportar consigo os despojos mortais dos pais; outros, se podem cozinhar os alimentos nos domingos (a heresia considera grave falta para eles o fato de preparar a comida em tal dia); outros, querendo abrir um túmulo no cemitério, onde repousaram os ossos dos antepassados, convidam-nos para rezarmos no local, a fim de que sejam afastados os seus antigos deuses, que eles chamam satã.
Os aborígines tornam-se muito amáveis quando convertidos ao Senhor. Nós os amamos e eles sabem compensar-nos. Eis uma pequena prova disso: encontrando-me, certo dia, em local repleto de samambaias, deram-me duas meninas para acompanhar-me. Elas faziam esforços penosos para atravessar a espessa vegetação, chegando a deitar-se completamente para me abrir caminho; quando logrei atravessar certo trecho escarpado, uma delas exclamou: Ah! Estou feliz.
Reverendo e caro padre, teria ainda muitos outros pequenos fatos para vos narrar mas consagro o espaço seguinte para dirigir algumas palavras aos nossos bons Irmãos.
Caros Irmãos em Jesus Cristo, que a paz do Senhor esteja convosco. Quanto somos felizes pelo fato de sermos filhos de Deus. Deus é a nossa vida; morrendo para nós, vivemos para ele. Quanta felicidade sentimos por termos renunciado aos bens deste mundo. Que digo? Que é que temos deixado? Com Deus, temos tudo; ele é o único bem, aquele que contém todos os outros.
Possamos nós viver e morrer por ele; possamos dizer-lhe no mais íntimo do coração: Ó meu Deus, entrego alma e corpo ao vosso divino serviço; estou pronto para fazer tudo quanto agrada à vossa santa vontade, até caminhar na via dos sofrimentos e humilhações. A vida é pesada para quem não ama a Deus. Por que nos inquietarmos nesta vida? Deixemos agir a amável Providência; quanto mais amarmos a Deus, tanto mais olhará para nós e assegurará a nossa salvação.
Caros Irmãos, se quereis ser santos, permanecei, humildemente, com a cruz de Jesus; tende-a como consolação. Rogai ao divino Mestre que crie em vós um coração puro e renove o fundo da vossa alma, nela infunda a retidão de espírito e limpe o coração do pecado. Vamos ao Senhor, que nos chama; avancemos apoiados tão-só na pura misericórdia. Se soubermos aproveitar bem a graça, a todo o instante adquiriremos bens inefáveis. Coragem. O combate dura pouco, mas o triunfo será eterno. Seja-nos possível amar a Deus como ele deseja ser amado e conforme nós mesmos desejamos amá-lo. Tudo nos seja indiferente, afora o amor de Deus e a esperança de possuí-lo.
Caros Irmãos, retorno ao meu pensamento inicial: morramos a nós mesmos para vivermos em Deus. Que ele seja o nosso único sustento. Se combatemos os inimigos da salvação, ele luta conosco, porque a nossa batalha será por ele. Se enfrentamos sofrimentos, estará conosco, porque sofreremos por ele. Vivamos e morramos por Jesus, porque viveu e morreu por nós. Que a paz do Senhor esteja sempre convosco.
Rogo-vos que vos recordeis de mim nas vossas orações. Os padres Besson e Matricon encontrarão aqui a expressão do meu sincero afeto.
SERVANT mis. apost.
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Notas
É a última carta dirigida ao Pe. Champagnat desta nossa coleção. O seu autor é o Pe. Catherin Servant, do qual já tivemos ocasião de comentar outras cartas. Apresenta a particularidade de ter sido escrita um ano depois que o Pe. Champagnat tinha falecido. Isso se deve ao fato de que as cartas da França para a Polinésia, e vice-versa, empregavam muito tempo para chegar ao destinatário, dependendo sempre da ocasião oferecida por alguma embarcação que rumasse para o destino apropriado. Podia demandar mais de ano (Carta n° 186). Esta carta, como as demais do Pe. Servant, é cheia de respeito pelo Fundador e de estima pelos Irmãos da comunidade de l’Hermitage, a quem dedica a parte final do texto, verdadeira página de aconselhamento espiritual. Da mesma forma como ainda não tinha sido informado da morte do Pe. Champagnat, também nada sabia de outro fato triste, acontecido apenas um mês antes, em local bem mais próximo, na ilha de Futuna: o martírio do Pe. Chanel, seu companheiro nas missões. Nesta carta ele não diz nada sobre esse glorioso martírio, sinal de que o ignorava. O próprio Pe. Servant será o continuador do apostolado do Pe. Chanel na ilha de Futuna, de 1842 até 1856.
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APM. Z 208